Fazia um dia ensolarado enquanto Sara subia a rua com uma sacola na mão. Ela tinha um andar calmo e feminino, mas certamente não seria modelo, devido à má postura que as carteiras da escola haviam lhe dado. Ela caminhava para casa, em sua rotina normal, a mesma rua, as mesmas árvores e condomínios, enquanto uma brisa levantava levemente o cabelo de Sara, fazendo-os ganharem um pouco mais de brilho. A jovem disse "bom dia" ao segurança enquanto abria o portão do prédio. Era claramente um lugar agradável, havia uma grande área no térreo onde crianças brincavam no parquinho, e próximo dalí, garotos praticavam algum esporte na mini-quadra, e como estava sem pressa, resolveu passear pelo andar, já que não fazia isso há muito tempo. Ela desviou então de seu caminho original que passaria pelo hall do primeiro prédio do complexo, e seguiu em frente.
Meia dúzia de garotinhos e garotinhas disputavam lugar para descer no novo escorregador enquanto suas babás conversavam distraidamente num banco próximo. Um sorriso formou-se em seus lábios. Gostava daquele parquinho. Na verdade, passara boa parte de sua infância nesse lugar, até que a escola foi tomando seu tempo e ela parou de brincar lá desde... Desde quando mesmo? Os pés dela foram conduzindo-a por conta própria para mais adiante enquanto ela pensava, mas por mais que quisesse, não conseguia se lembrar.
Sara raramente pensava em sua infância, e no seu passado, porém o desnível no chão perto da mini-quadra interrompeu um pouco sua linha de pensamento. Era uma pedra solta do piso. Agora ela se lembrava, sempre havia uma pedra solta por alí quando ia jogar volei com seus amigos. Ela sempre afundava. Sempre. Sara olhou pra baixo um instante, perguntando-se porque não tinham trocado o piso após todos os dez anos de existência do condomínio. A pedra de uns vinte e cinco centímetros quadrados, levemente gasta pelo tempo fazia um curioso ploc quando se pisava nela, era um som surdo e oco. A garota continuou seu caminho então para um salão não muito grande, onde se encontravam vários brinquedos, como duas casinhas de boneca gigantes, outro escorregador, e um pequeno gira-gira. Ouvia-se risos por todos os lados naquele ambiente extremamente iluminado. Crianças sem preocupação alguma pulavam e corriam de um lado para o outro sem saber de suas responsabilidades futuras. Sentiu inveja delas ao lembrar subitamente de sua lição de casa esperando-a lá em cima, mas esse não era o único motivo.
Ela tomou o caminho de volta, infeliz por não poder continuar seu passeio naquele belo dia de sol. Passou pela porta do hall de entrada, ignorando como sempre, a presença dos dois sofás cor-de-rosa que jaziam imóveis em seus lugares habituais, cada um embaixo de seu respectivo espelho retangular. Desviou da mesinha central que acompanhava todo o conjunto da decoração, indo em direção ao elevador, que naturalmente estava parado no que parecia ser seu andar favorito, a cobertura.
Por mera questão de estética e praticidade, mais um espelho pedia ao lado do elevador, e nele, sempre havia um borrão leve e serpenteado bem no centro, como uma espécie de brincadeira da pessoa que o limpava todos os dias. Sara aproveitou a demora diária do maldito elevador para amarrar o tênis, que parecia incapaz de ficar quieto. Uma porta cinza-chumbo abriu-se para o lado esquerdo com um leve som arrastado e sombrio, anunciando que sua carona para casa havia chegado. Entrou no pequeno espaço absurdamente iluminado, apertando o botão de seu andar de modo inconsciente enquanto olhava para a imagem de si mesma à sua frente. Enxergava-se uma colegial de não mais do que dezesseis anos, que vestia uma blusa preta escolhida cuidadosamente na Zara, e um jeans colado, que definiam bem seu corpo esbelto. A mochila pendia um pouco nas costas, coberta pelo cabelo de Sara. Despenteado, pensou olhando os cachos castanhos que estavam apenas um pouco frisados. A porta se abriu mais uma vez pra uma breve entrada de duas portas.. Girou a chave na fechadura, e finalmente estava em casa.
Olhou em volta. Tudo exatamente como deveria estar. A sala era agradável, uma bela mesa trabalhada com madeira e vidro, se encontrava logo à direita da porta, decorada apenas com um vaso de cristal onde jaziam alguns cravos. Do outro lado, uma espécie de barzinho para armazenar garrafas de vinho ganhas por amigos e parentes dos pais dela. Só alguns minutos depois, notou que a TV, numa parte mais longínqua da sala, estava ligada. A mãe parecia assistir um programa qualquer, mas na verdade lia algum livro enquanto o comercial não acabava.
- Já almoçou?
- Já, mãe. Acabei de voltar da vó. Trouxe as coisas que você pediu, aqui - entregou a sacola - vou tomar banho.
Entrou no quarto, onde para quem olhasse de fora, parecia um quarto normal, de uma garota normal, com coisas normais. Mas ao entrar, a atmosfera tornou-se completamente diferente. O simples quarto, ganhou dimensões assustadoras, o ambiente escureceu, e a decoração se tornou irreconhecível, exeto por poucos aspectos. O lugar, que agora era quase uma casa, lembrava bem um quadro de natureza morta. Tudo era visto por uma luz muito fraca. Ela jogou tudo em cima de uma bela cama coberta por uma manda de seda cor-de-vinho bordada com flores, que ficava encostada na parede, e se dirigiu ao armário. Suas roupas sempre foram muito bem escolhidas, era muito exigente com o que vestia. Eram as três coisas habituais, exigente com roupas, culinária e com as pessoas à sua volta. Era isso o que todos viam: a garota de elegância discreta, paladar aguçado e seus poucos amigos.
Abriu o armário, escolhendo uma roupa qualquer para vestir depois do banho. Um vestido. Mas estava (sempre) frio naquele quarto, já tinha se acostumado. Olhou em volta antes de sair. As cortinas davam ainda menos luminosidade ao quarto, e havia um incenso aceso em algum lugar, talvez perto de alguma pilha de livros amarelados. Então fechou a porta. Mas é claro, aquilo não era seu quarto. Era sua mente. Seu quarto era na verdade algo mais normal, cama de madeira, apostilas por todo o canto, uma bolsa pendurada na maçaneta do armário, um computador ao lado de uma vasta janela aberta, e estrelas no teto. Mas continuava frio.
Sara atravessou a porta do banheiro enrolada numa toalha, segurando nos braços as roupas da escola e a mochila. Deixou sua toalha pendurada num suporte, e ligou o chuveiro. Amanhã faria 17 anos. E nada havia mudado. Depois de mudar tanto, sua vida tinha estagnado. Sara imaginara, em algum ponto do seu passado que seria bom se isso finalmente acontecesse, mas tinha se enganado. Ás vezes o passado a engolia, implorando pela estabilidade de antes. Ela parara de sonhar, e agora os pesadelos eram reais. A água morna lhe caía sobre o corpo e os pensamentos iam longe. Seu futuro estava lá, tinha que cumprir com suas obrigações, e entrar no vestibular, para que então pudesse ter tempo para algo mais importante. Suas promessas. Tinha quase tudo que podia ter. E parece mentira, mas seu coração estava vazio, e a vida era estranha naquela cidade.
Sara sempre pensou que todos de algum modo parecem sem rumo, e ela também. Era um dia quente de Outubro, e o vestibular estava lá. Menos de um mês se fazia... E como a maioria dos jovens, uma boa faculdade era seu objetivo. Estudava, se esforçava, e podia ser que passasse, mas seu coração continuaria vazio. Será que passar na faculdade era mesmo tão importante? Não era no ponto de vista social que ela pensava... Gostaria de poder cumprir com suas próprias metas sem as interrupções obrigatórias que apenas fazem com que certos sonhos atrasem mais para acontecer.
Um comentário:
Novamente as descrições atingiram certo grau de qualidade, com um patamar que me permite imaginar o cenário de uma maneira fotográfica (já que minha função é a de estudar os espaços).
Bom, mas será que isso aí não teve alguma influência da vida da autora? Talvez pela idade da protagonista, não sei...
A visão idealizada da infância marca este conto, que tem como ambiente a típica moradia da classe "mérdia", cujos detalhes estão impregnados em todo condomínio...
Gostei do conto pois implicitamente foi citada a década de 1990, por qual sinto uma profunda nostalgia (1996, 1997, 1998... bons tempos aqueles).
O nome da garota (Sara - já vi esse nome antes em um conto seu) e o cenário das criancinhas do parque me fizeram lembrar de uma cena memorável do filme "O Exterminador do Futuro 2", de 1991.
A tal cena retrata uma visão da mercenária Sarah Connor, que vê por de trás de uma grade de ferro criancinhas felizes brincando em um parque em um nostálgico entardecer na periferia de Los Angeles, quando de repente cai uma bomba atômica no centro da cidade e TODOS são dizimados...
Enfim, voltando à sua estória, há certos toques de expressionismo quando se retrata o "ambiente mental" que a jovem constrói a partir de seu quarto.
Mas algo meio que estraga o final de seu conto. O fato de você citar a USP e os jovens alienados que se acabam para entrar nela...
Isso empobreceu seu texto. Então, retire isso, deixando essa idéia implícita em algo mais profundo...
...pois se você conseguir criticar o pensamento, não precisará citar nomes.
Continue escrevendo. Bons anos 90!
Saudações Vermelhas
Postar um comentário