sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Outubro

Fazia um dia ensolarado enquanto Sara subia a rua com uma sacola na mão. Ela tinha um andar calmo e feminino, mas certamente não seria modelo, devido à má postura que as carteiras da escola haviam lhe dado. Ela caminhava para casa, em sua rotina normal, a mesma rua, as mesmas árvores e condomínios, enquanto uma brisa levantava levemente o cabelo de Sara, fazendo-os ganharem um pouco mais de brilho. A jovem disse "bom dia" ao segurança enquanto abria o portão do prédio. Era claramente um lugar agradável, havia uma grande área no térreo onde crianças brincavam no parquinho, e próximo dalí, garotos praticavam algum esporte na mini-quadra, e como estava sem pressa, resolveu passear pelo andar, já que não fazia isso há muito tempo. Ela desviou então de seu caminho original que passaria pelo hall do primeiro prédio do complexo, e seguiu em frente.


Meia dúzia de garotinhos e garotinhas disputavam lugar para descer no novo escorregador enquanto suas babás conversavam distraidamente num banco próximo. Um sorriso formou-se em seus lábios. Gostava daquele parquinho. Na verdade, passara boa parte de sua infância nesse lugar, até que a escola foi tomando seu tempo e ela parou de brincar lá desde... Desde quando mesmo? Os pés dela foram conduzindo-a por conta própria para mais adiante enquanto ela pensava, mas por mais que quisesse, não conseguia se lembrar.

Sara raramente pensava em sua infância, e no seu passado, porém o desnível no chão perto da mini-quadra interrompeu um pouco sua linha de pensamento. Era uma pedra solta do piso. Agora ela se lembrava, sempre havia uma pedra solta por alí quando ia jogar volei com seus amigos. Ela sempre afundava. Sempre. Sara olhou pra baixo um instante, perguntando-se porque não tinham trocado o piso após todos os dez anos de existência do condomínio. A pedra de uns vinte e cinco centímetros quadrados, levemente gasta pelo tempo fazia um curioso ploc quando se pisava nela, era um som surdo e oco. A garota continuou seu caminho então para um salão não muito grande, onde se encontravam vários brinquedos, como duas casinhas de boneca gigantes, outro escorregador, e um pequeno gira-gira. Ouvia-se risos por todos os lados naquele ambiente extremamente iluminado. Crianças sem preocupação alguma pulavam e corriam de um lado para o outro sem saber de suas responsabilidades futuras. Sentiu inveja delas ao lembrar subitamente de sua lição de casa esperando-a lá em cima, mas esse não era o único motivo.


Ela tomou o caminho de volta, infeliz por não poder continuar seu passeio naquele belo dia de sol. Passou pela porta do hall de entrada, ignorando como sempre, a presença dos dois sofás cor-de-rosa que jaziam imóveis em seus lugares habituais, cada um embaixo de seu respectivo espelho retangular. Desviou da mesinha central que acompanhava todo o conjunto da decoração, indo em direção ao elevador, que naturalmente estava parado no que parecia ser seu andar favorito, a cobertura.

Por mera questão de estética e praticidade, mais um espelho pedia ao lado do elevador, e nele, sempre havia um borrão leve e serpenteado bem no centro, como uma espécie de brincadeira da pessoa que o limpava todos os dias. Sara aproveitou a demora diária do maldito elevador para amarrar o tênis, que parecia incapaz de ficar quieto. Uma porta cinza-chumbo abriu-se para o lado esquerdo com um leve som arrastado e sombrio, anunciando que sua carona para casa havia chegado. Entrou no pequeno espaço absurdamente iluminado, apertando o botão de seu andar de modo inconsciente enquanto olhava para a imagem de si mesma à sua frente. Enxergava-se uma colegial de não mais do que dezesseis anos, que vestia uma blusa preta escolhida cuidadosamente na Zara, e um jeans colado, que definiam bem seu corpo esbelto. A mochila pendia um pouco nas costas, coberta pelo cabelo de Sara. Despenteado, pensou olhando os cachos castanhos que estavam apenas um pouco frisados. A porta se abriu mais uma vez pra uma breve entrada de duas portas.. Girou a chave na fechadura, e finalmente estava em casa.

Olhou em volta. Tudo exatamente como deveria estar. A sala era agradável, uma bela mesa trabalhada com madeira e vidro, se encontrava logo à direita da porta, decorada apenas com um vaso de cristal onde jaziam alguns cravos. Do outro lado, uma espécie de barzinho para armazenar garrafas de vinho ganhas por amigos e parentes dos pais dela. Só alguns minutos depois, notou que a TV, numa parte mais longínqua da sala, estava ligada. A mãe parecia assistir um programa qualquer, mas na verdade lia algum livro enquanto o comercial não acabava.

- Já almoçou?
- Já, mãe. Acabei de voltar da . Trouxe as coisas que você pediu, aqui - entregou a sacola - vou tomar banho.

Entrou no quarto, onde para quem olhasse de fora, parecia um quarto normal, de uma garota normal, com coisas normais. Mas ao entrar, a atmosfera tornou-se completamente diferente. O simples quarto, ganhou dimensões assustadoras, o ambiente escureceu, e a decoração se tornou irreconhecível, exeto por poucos aspectos. O lugar, que agora era quase uma casa, lembrava bem um quadro de natureza morta. Tudo era visto por uma luz muito fraca. Ela jogou tudo em cima de uma bela cama coberta por uma manda de seda cor-de-vinho bordada com flores, que ficava encostada na parede, e se dirigiu ao armário. Suas roupas sempre foram muito bem escolhidas, era muito exigente com o que vestia. Eram as três coisas habituais, exigente com roupas, culinária e com as pessoas à sua volta. Era isso o que todos viam: a garota de elegância discreta, paladar aguçado e seus poucos amigos.

Abriu o armário, escolhendo uma roupa qualquer para vestir depois do banho. Um vestido. Mas estava (sempre) frio naquele quarto, já tinha se acostumado. Olhou em volta antes de sair. As cortinas davam ainda menos luminosidade ao quarto, e havia um incenso aceso em algum lugar, talvez perto de alguma pilha de livros amarelados. Então fechou a porta. Mas é claro, aquilo não era seu quarto. Era sua mente. Seu quarto era na verdade algo mais normal, cama de madeira, apostilas por todo o canto, uma bolsa pendurada na maçaneta do armário, um computador ao lado de uma vasta janela aberta, e estrelas no teto. Mas continuava frio.

Sara atravessou a porta do banheiro enrolada numa toalha, segurando nos braços as roupas da escola e a mochila. Deixou sua toalha pendurada num suporte, e ligou o chuveiro. Amanhã faria 17 anos. E nada havia mudado. Depois de mudar tanto, sua vida tinha estagnado. Sara imaginara, em algum ponto do seu passado que seria bom se isso finalmente acontecesse, mas tinha se enganado. Ás vezes o passado a engolia, implorando pela estabilidade de antes. Ela parara de sonhar, e agora os pesadelos eram reais. A água morna lhe caía sobre o corpo e os pensamentos iam longe. Seu futuro estava lá, tinha que cumprir com suas obrigações, e entrar no vestibular, para que então pudesse ter tempo para algo mais importante. Suas promessas. Tinha quase tudo que podia ter. E parece mentira, mas seu coração estava vazio, e a vida era estranha naquela cidade.

Sara sempre pensou que todos de algum modo parecem sem rumo, e ela também. Era um dia quente de Outubro, e o vestibular estava lá. Menos de um mês se fazia... E como a maioria dos jovens, uma boa faculdade era seu objetivo. Estudava, se esforçava, e podia ser que passasse, mas seu coração continuaria vazio. Será que passar na faculdade era mesmo tão importante? Não era no ponto de vista social que ela pensava... Gostaria de poder cumprir com suas próprias metas sem as interrupções obrigatórias que apenas fazem com que certos sonhos atrasem mais para acontecer.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O Apartamento - Capítulo Primeiro

Richard voltava tarde de uma reunião de trabalho, foi outro dia longo. Ele dirigia numa avenida sufucada pelo trânsito da hora do rush, e o vidro escurecido lhe atrapalhava um pouco a visão naquela hora da noite. No rádio, ele ouvia Bee Gees, Staying Alive, enquanto aproveitava o sinal vermelho para inclinar o espelho para si e arrumar o cabelo levemente grisalho. Richard aparentava ser mais jovem do que seus quarenta e cinco anos, o cabelo era sempre penteado para trás, o olhar era sério através dos óculos, mas nem por isso tinha muitas rugas.
Apesar das buzinas constantes, ele estava se sentindo bem por estar quase em casa. Tirou suas mãos da conhecida posição "dez para as duas" do volante para abrir um botão da camisa e aumentar o volume da música quando um Gol fez um enorme arranhão lateral em sua Picape. Logo agora?, ele pensou respirando fundo, nutrindo-se de um pouco mais de paciência. Desligou o carro, abriu a porta e saiu. Contornou o porta-malas da Picape postando-se em frente ao outro motorista. A princípio, a escuridão não lhe permitiu ver muito bem, mas então reconheceu aquela face. Tinha que ser.O dono do Gol era Ezequiel, e já o conhecia há uns quinze anos.
Richard morava em Portland, no Maine, num condomínio com várias áreas de lazer, típico de cidade. Havia condomínios mais luxosos, mas aquele se encaixava bem para ele e para a esposa. O apartamento era no décimo segundo andar, a varanda dava boa parte da luminosidade da sala e sua decoração era elegante, misturando o antigo com o moderno. Um lustre de cristal, adaptado para a luz elétrica, pendia sobre uma linda mesa de jantar de mogno trabalhada nas laterais e no centro, e logo em frente, uma televisão de LSD, último tipo era acompanhada de dois sofás muito confortáveis e uma poltrona entre eles. Os quartos tinham uma arrumação mais simples e prática para o dia-a-dia. O ambiente era normalmente dedicado à leitura ou ao sono era podia ser tranquilo, se não fosse um detalhe. O vizinho de cima.
Ezequiel também compara seu apartamento na inauguração do prédio. Era natural que precisavam ser feitos ajustes no lugar, furando paredes, pondo piso, trazendo móveis, martelando madeira maciça, e diversas outras coisas. A maioria dos apartamentos ficou pronta em dois ou três anos, mas o décimo terceiro parecia mais atrasado. Aquele desgraçado. Sempre derrubando coisas... E morava no treze... Não que Richard fosse superticioso, mas o quê ele podia dizer, se simplesmente dava azar? Seu pai lhe dizia muito uma frase que ele também acabou usando milhares de vezes: não acredito em bruxas, mas que elas existem, elas existem.
A frase de seu pai acabou se transformando num de seus bordões principalmente porque também era uma rase adaptável para outros seres do gênero. Podia ser que o número fosse coicidência. Mas era o treze, ele pensou. O número não importava tanto, mas lá em cima, em algum lugar acima dos tijolos do teto, estava Ezequiel e sua família. Como esse cara pode ter família? Richard Aguentou suas reformas por vários anos, mas agora já tinha passado dos limites. Ele furava, martela, ás vezes até gritava sem razão aparente, e os dois filhos, destruíam a casa, como sempre. Reparou que a mulher do vizinho calara-se há alguns meses. Deve ter fugido, pensou. Aquela família é perturbada.
Ezequiel, alí na sua frente, em meio aos carros parados e pessoas estressadas, parecia uma pessoa normal. Não tinha nada de errado para quem o olhasse: devia ter quase quarenta anos, vestido em sua camisa pólo, calsa jeans e sapatos pretos, tinha a chave do Gol na mão e um risinho sem-graça no rosto. O dono da Picape conteve-se para não empurrá-lo para a pista de trânsito bem atrás dele, então deu um ou dois passos na direção do outro homem.
- Muito bem... Qual é o número do seu seguro?
Eles passaram longos minutos falado sobre a despeza que iria dar e voltaram para casa. Richard deixou sua maleta em algum canto e beijou a esposa.
- Rich, você se atrasou hoje, a reunião foi tão longa assim?
Ele respirou fundo. Nem sabia por onde começar, mas quando abriu a boca para tentar articular um começo de frase... TUMP. Andar de cima. Cinco ou seis quilos cairam sobre o teto do número doze.
- Oh, Deus, o que foi dessa vez? - disse Richard olhando para o teto branco.