terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Começo do Fim - Parte II

O som de passos quebrou o silêncio que havia na clareira perto do lago. O passos eram tranquilos, sem pressa (não havia mais vontade neles), pareciam passear por ali. Selene permaneceu como estava horas antes, de pé, braços cruzados, de costas para a claridade enquanto o outro se aproximava calmamente.

- Oi, Selly. - disse ele.
- Oi. - respondeu ela em tom neutro.

Houve um momento de silêncio, momento em que desculpas deveriam ser ditas. Mas não foram.

- Onde você estava? - perguntou ela.
- Você sabe que eu estava trabalhando no laboratório. - respondeu ele em tom sério.
- Sozinho? - disse ela depois de respirar fundo, ainda sem se virar para ele.
- Não.

Mais um momento de silêncio.

- É ela outra vez? Aquela sem graça? - disse ela com desprezo.
- Não fale dela assim. É minha amiga.
- Mesmo? E eu sou o quê pra você? Só porque ela é uma cientista, você acha que só porque ela é inteligente, ela é melhor para te fazer companhia do que eu?

Mais um momento de silêncio.

A outra moça tinha a mesma altura de Selene, sua pele era muito branca, mas não bela e alva como a dos vampiros, e sim desbotada e levemente rosada como um tecido que fora vermelho há muito, muito tempo, e que a tinta se gastara pelo uso. Seu cabelo era de um loiro doente e fraco, algo que mais lembrava uma samambaia morta e terminava caindo em sua face de riso idiota e óculos arredondados e ridículos. Tudo isso também combinava perfeitamente com as roupas excessivamente compridas, sempre de um tom muito neutro de um bege enjoado ou um rosa claro, parecendo algum remédio ruim. No aspecto geral, ela era a garota mais absolutamente e irremediavelmente sem graça que Selene já havia visto. Ela era uma garota. Selene era uma mulher. E isso fazia toda a diferença.

- Talvez eu só seja tediosa pra você - embora eu ache muito difícil qualquer garota ser mais desinteressante do que sua "amiga"... - disse Selene de lado.
- Não é justo você falar dela assim. - respondeu ele, ainda sério.
- E por acaso é justo me deixar aqui te esperando por tanto tempo?
- Eu estava trabalhando!
- O que não me torna menos importante!
- Você é importante!

Ainda de costas, ela finalmente virou-se para ele e disse:

- Pare.
- Com o quê?
- Pare de mentir pra mim. Pare de dizer que sou importante. Pare de dizer que se importa.
- Não é mentira. - disse ele.
- Se fosse verdade, não era assim que você deveria me tratar. Eu faço tudo por você, valorizo nosso tempo juntos, faço o possível e o impossível para estar com você... Mas e você? O que faz? Nada. Nem me avisar avisa, e quando avisa é sempre uma desculpa esfarrapada, de que vai estar com alguma outra pessoa que obviamente é mais importante pra você.
- Obrigado por me fazer escolher! - respondeu ele em desprezo. Ela riu.
- Haha, o quê? Você acha que nunca vai precisar fazer escolhas na vida? Que sempre vai poder deixar sua namorada de lado? Que você pode (supostamente) amar uma mulher e deixá-la de lado sempre que tem vontade?
- Por que eu sempre tenho que escolher pra você? - respondeu ele com raiva.
- Porque você tem! A vida é assim! - disse ela se afastando. - (Porque você nunca me escolhe...?)
- O que você está fazendo? - perguntou ele, vendo-a seguir adiante.
- Já que você nunca me escolhe, estou escolhendo por você. Desisto. Contente? Desisto de você porque você desistiu de mim antes, me deixando sozinha. Sempre sozinha. Adeus, Tess. - disse ela friamente desaparecendo na névoa do lago.

[Soundtrack: "Kiss Me" - The Corrs]

sábado, 24 de dezembro de 2011

Dellirium - Parte III

- Então você é Voltaire? o Voltaire dos anos-voltaire? - perguntou Albert devolvendo o aperto de mão do outro.

Voltaire fez um sorriso largo e disse "Por aqui", seguindo Marcus navio adentro.

- Ela foi infectada com certeza... - completou ele.

Enquanto andavam pelo navio, Albert registrava as pessoas estranhas e os vários objetos curiosos, vindos de outras épocas, que estavam eventualmente decorando o navio. Os outros tripulantes o observavam, caminhando atrás de seus dois companheiros, em sua curiosidade educada e um tanto fofoqueira, as moças falando atrás de seus leques, e os homens com as cartolas e chapéus-coco na frente do queixo. Albert olhou para eles, alguns instantes, todos com um estranho brilho avermelhado em suas íris, e aquilo lhe deu algum pavor.

Marcus entrou numa sala com um tipo de altar no qual deitou Selene.

- Você deve sair, velho. - disse Marcus sombriamente.
- Não vou deixá-la, Marcus. - respondeu Albert pondo levemente a mão por cima de sua espada.

Fez-se um momento de silêncio até que Voltaire olhou para Marcus longamente e disse:

- Fique, Al. Acho que é algo que você deveria ver...
- O que aconteceu com ela, exatamente? - disse, aproximando-se um pouco do altar para observá-la.
- Foi infectada pela Physis... - respondeu Marcus.

[Soundtrack: "Metropolis" - Interpol]

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Começo do Fim - Parte I

Selene corria por todo o castelo, o vestido esvoaçante atrás de si, tudo para chegar ao lago à tempo. Mas, como sempre, calculara demais o tempo e chegou muito cedo. O lago estava lindo como sempre, como no dia em que Tess entrou nele aos tropeços.

Ela largou os sapatos de qualquer jeito numa pedra próxima e saltou para uma parte raza do lago, apenas para molhar os pés enquanto esperava o cavalheiro que ainda não tinha chegado. A água era tão morna quanto a eterna brisa de primavera que era constante em Floratta. Os pés da princesa passeavam sem qualquer dificuldade no chão liso do lago límpido, fazendo pequenos círculos de água a medida que ela andava e saltava pela água, feliz pelo calor que a rodeava, feliz porque estava à espera dele.

Até que os saltos tornaram-se uma caminhada... e a caminhada tornou-se passos... e os passos finalmente se acalmaram, quietos sobre a beirada do lago, que agora parecia um pouco menos límpido e belo do que de costume. Ele tinha se atrasado mais uma vez. Atrasado demais.

Ela olhou para o céu alaranjado que já mostrava suas primeiras estrelas, e o final de uma lua minguante... Selene pensou que a lua lembrava um gato sorrindo, então lembrou-se de uma frase que ouvira quando era criança: "Eu já vi um gato sem um sorriso, mas nunca um sorriso sem um gato".

O que quer de mim, Lua? Rir de mim porque ele me deixou sozinha de novo? A princesa então chutou a área do lago próxima ao seus pés, levantando um bom montante de água e espalhando-a em pequenas gotas brilhantes no ar à sua frente. É engraçado? Ela olhou para o próprio reflexo na água e chutou-a mais uma vez. É mesmo engraçado? Pensou ela cerrando seus punhos sem perceber. Como sou estúpida. Estúpida! ESTÚPIDA!

Uma corrente de água fria passou por seus pés, mas ela não se deu conta disso. Sentiu-se infeliz e vazia, lembrando da quantidade de vezes que já ficara alí. Ele sempre a encontrava no lago depois de seus afazeres. No início, claro, tudo era belo, haviam beijos e abraços. E consideração. Carinho.

Ela o observava de sua torre enquanto os soldados treinavam táticas de guerra, e ele (quando tinha tempo, claro...), observava a princesa em suas aulas de esgrima. Depois dos afazeres de cada um, ambos iam para o lago de mãos dadas. Depois de um tempo, apenas se encontravam lá. E depois de mais algum tempo, ela apenas o esperava, sempre sozinha, porque ele jamais viria, estava ocupado demais com os "deveres do Estado". "Eu sou o Estado!", gritara ela milhões de vezes em sua mente, mas nunca o dissera realmente. Mesmo que o quisesse ao seu lado, sua participação nos deveres do exército eram importantes, e cada vez mais exigidas por causa das várias guerras em províncias vizinhas.

Ela também tinha seus deveres, fazia as relações sociais de Floratta com os representantes das outras províncias, o que envolvia várias viagens até a fronteira, ou ser cordial com aqueles que o Rei recebia. Tais coisas, ainda que necessárias e mesmo sendo coisas que Selene gostava de fazer, eram exaustivas e tomavam tempo e sono. Todo país depende de suas relações exteriores, só era uma pena que certos soldados valorizavam mais a defesa de seu país do que o bom convívio com as regiões próximas e seus representantes... Suas tarefas não eram valorizadas, e, de alguma forma, os deveres de Tess sempre acabavam parecendo mais importantes do que a mera habilidade de estabelecer relações amistosas com os Estados vizinhos.

Com a frequência das desculpas dele, ela pareceu a pôr seu dever (e ela mesma) abaixo das tarefas de Tess, como algo que não importasse... Porque, claro, se importar com a harmonia entre nações vizinhas não era tão importante quanto defender a sua própria. Assim como também o tempo que ela arranjava, corrido e com sono interrompido diversas vezes, apenas para vê-lo, tempo antes tão precioso, querido e importante (pelo menos para ela), agora se dava apenas para Selene decepcionar-se e perder seu tempo...


[Soundtrack: "The Scientist" - Coldplay]

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Dellirium - Parte II

"... mais do que qualquer degradação particular em minhas faltas, foi a natureza implacável das minhas aspirações que fez de mim o que eu era e, com uma vala ainda mais profunda do que na maioria dos homens, separou em mim as províncias do bem e do mal que compõem a natureza dual do homem"

'O Médico e o Monstro', de Robert Louis Stevenson

[Soundtrack: "Lullaby" - The Cure]


sábado, 10 de dezembro de 2011

Dellirium - Parte I

Há muito tempo, havia uma lenda sobre uma estranha nau que carregava os Eternos consigo pelos céus de todo o mundo. Os Eternos eram uma sociedade, aqueles que guardavam o Segredo dos Segredos, uma substância entendida por eles como Physis...

A lenda fala sobre algo que atravessa o tempo, a matéria que é fundamento eterno de todas as coisas e confere unidade e permanência ao Universo, o qual, na sua aparência é múltiplo, mutável e transitório. Physis era procurada por alquimistas e reis, bruxos e mortais desde que o mundo é mundo, e aquele que a conseguisse deveria guardar seu segredo para sempre.

Alguns a chavam fonte da juventude, outros de elixir da vida eterna, mas seu significado é mais amplo. Refere-se também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve, o fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna.

Ninguém sabe como os Eternos se uniram, mas acredita-se que tal conhecimento tenha levado-os a se conhecerem eventualmente para preservar tal segredo do resto da humanidade. Assim, eles se tornaram aquilo que equilibra as coisas mundanas, os humanos e o poder, viajando em sua Nau, nos vigiando o tempo todo.

Poucas pessoas através dos séculos alegaram ter visto Dellirium passar pelos céus. A maioria era mentira, é claro. Porém, dizia-se que somente alguns, aqueles verdadeiramente destinados ao poder e à liderança de um povo podiam vê-la no céu, e então este seria o próximo escolhido a levar a Physis consigo até que o próximo Eterno destinado a ela surgisse.

[Soundtrack: "Silence" - Enigma & Sarah McLaughlin]

A Ilha - Parte X

O jovem observava a garota deitada na areia com seus olhos birlhantes e esverdeados, e ela continuava imóvel e sem vida.

- Selene! - disse Albert despertando de seu transe, e descendo a árvore com dificuldade para encontrar-se com ela.

Enquanto o velho ainda se aproximava a passos lentos, o garoto começou uma respiração boca-a-boca em Selene, que começou a tossir água quase que imadiatamente.

- Quem é você? - perguntou Albert enquanto o jovem pegava a garota desacordada em seus braços e começava a andar em direção à airship.

O jovem deu um sorriso meio de lado e disse:

- Meu nome é Marcus... E aquela - disse olhando pra cima - é Dellirium, minha airship... Vocês devem vir conosco, não conseguirão viver aqui.

O estranho navio então pousou levemente no chão, levantando um pouco de areia no ar. O velho seguiu Marcus até a prancha, ainda abismado. O jovem tem razão, não conseguiriamos ficar aqui muito mais tempo...

Selene balançava levemente nos braços de Marcus enquanto este subia a prancha calmamente com Albert atrás de si, mal acreditando no que via...

O velho olhava em volta, percebendo todos os detalhes que era capaz de assimilar. A airship lembrava um enorme dirigível com diversas hélices de um metal brilhante e prateado, que sustentava a maior nau que já vira na vida. Então esta é a famosa Dellirium, a Nau dos Eternos...

E qual também não foi a supresa de Albert ao ver alguém aproximar-se dele e dizer "Olá, tripulante, meu nome é Voltaire"...


[Soundtrack: "I'm the Highway" - Audioslave]