terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Chuva

Já era noite, e ela sentava no sofá da sala com um livro nas mãos. Estava nos primeiros capítulos de um conto sobre história alternativa do século XIX, e já tinha lido a mesma frase dez vezes. Quando seu deu conta disso, largou o livro no braço do sofá e esfregou os olhos, fechando-os. Não conseguia parar de pensar naquele dia chuvoso.

O céu estava repleto de nuvens escuras e pesadas quando ele chegou. O horário não era importante, só sabia que tinha que ir. Correu o mais rápido que pôde para encontrá-lo ainda na rua, onde o beijo foi inevitável. A chuva já caía fazia algum tempo, molhando cabelos, roupas, toques e as bocas de ambos, mas eles não ligavam. O abraço se apertava mais com a profundidade do beijo que se intensificava cada vez mais, até os dois olharem-se, corados, entendendo silenciosamente que não deveriam mais ficar ali.

Ele olhou para ela e segurou sua mão, as gotas de chuva pingando de seu cabelo curto, contornando seu rosto até seu sorriso terno. Ela sorriu de volta e ambos, de mãos dadas, seguiram calmamente na chuva em direção ao apartamento. A urgência aumentava ainda mais no beijo que se seguiu no elevador, e do elevador à porta. Com dificuldade e a contragosto, ela afastou uma de suas mãos de seu amante para pegar a chave.

Eles ainda pingavam, quando finalmente entraram no aposento. Suas roupas estavam coladas contra si, assim como seus corpos, o contraste de quente e frio aumentava, causando-lhes deliciosos arrepios. Não se importavam mais em conter os gemidos durante os beijos e intensificavam os toques na medida em que o desejo crescia. Naquele beijo, as carícias já não eram mais inocentes, ele tocava as laterais dos seios dela, apertando-os, enquanto ela retribuía puxando-o contra si pelo quadril.

Ambos desejavam-se de uma maneira inacreditável, os beijos viraram mordidas, os toques já eram apertões e arranhões.

- Te quero - ela disse corando, olhando-o nos olhos. Ele beijou-a intensamente em resposta e ela segurou sua mão e levou-o para dentro.

Já no quarto, ele tocou-lhe a cintura, tirou a blusa dela, jogando-a num lugar qualquer. Ela beijou-o docemente, terminando por morder levemente seu lábio inferior. Uma faísca percorreu o corpo dele e puxou a amante para si em reflexo. Ela, então, arrancou a camisa dele, jogando-a do outro lado do quarto, acertando o vidro da janela, e o contato dos dois corpos finalmente aconteceu. Foi inacreditável o toque das peles arrepiadas pela água da chuva, a forma como, apesar de geladas na superfície, esquentaram-se em apenas alguns segundos. A sensação dos corpos colados causavam ainda mais arrepios.

Ela abraçou-o num dos beijos, sentira tanta falta dele... Quando afastaram-se levemente, ele tocou-a pela cintura, olhando em seus olhos. Ela gostava daquele olhar, só ele olhava-a dessa maneira.

- Te amo - disse ele, tocando o rosto dela. Isso sempre fazia ela corar. Sempre.
- Eu também - ela respondeu, afagando-lhe a boxexa, fechando os olhos para um beijo.

E beijaram-se, como aquele primeiro beijo que eles deram tantos anos antes em esplêndido nervosismo e amor. Ela sempre pensava como os beijos dele eram doces, e como a tratava com carinho. Sentia falta dele por perto, e abraçou-o novamente, sem dizer nada. Seus olhos marearam por um segundo e abraçou-o mais. Ele abraçou de volta e afagou-lhe os cabelos, tocando os cachos com a delicadeza de sempre. Gostava de ficar ali, nos braços dele, esperando que o momento pudesse durar para sempre.

- Tudo bem? - disse ele. Ela fez que sim, ainda apoiando a cabeça no ombro dele. Ela só queria que ele estivesse sempre lá, mesmo que fosse só para fazer o que estava fazendo naquele momento, ficar protegida nos braços dele sem dizer uma palavra, recebendo aquele carinho. Tinha tanta coisa que ela queria dizer, mas ela não encontrava as palavras certas. Podia dizer repetidamente o quanto ela o amava, o quanto ele era importante para ela, o quanto ela quer que ele não a deixe, mas era muito mais do que isso, eram coisas que não se coloca em palavras porque é simplesmente impossível tal a imensidão desses vários sentimentos diversos.

Talvez seja esta a conveniência de encontrarem-se num dia chuvoso como aquele. Lá fora havia quilómetros de neblina, os prédios esfumaçaram-se, as nuvens fundiam-se com a paisagem e não havia mais rua, luzes das janelas vizinhas ou o brilho dos para-raios. Tudo havia sido engolido por aquele nevoeiro de vapor, fazendo com que o resto do mundo desaparecesse. Agora o mundo era só deles, "nosso Éden", como ele havia dito uma vez; e acontecia que talvez a concepção de Paraíso não fosse necessariamente um lugar, mas os momentos que se tinha com quem se amava, e isso os tornava mais preciosos que tudo.

Suas mentes também tinham parado de raciocinar logicamente, tornando-se neblina como todo o resto. Não havia pensamentos, somente ações e sentimentos. Então eles amaram-se, querendo-se mais que a qualquer outra coisa. Amaram-se sinceramente até o dia seguinte quando ela deitou nos braços dele e disse:

- Fica comigo?
- Fico. Pra sempre.

E os dois dormiram um sono sem sonhos no eterno Éden de seu amor.

Imortal

"(...)aconteceu uma coisa inteiramente imprevista. Bom, pelo menos eu não previ. (...) Eu estava, pode-se dizer, à beira do abismo.

(...)E a poeira cósmica finalmente assentou; e o pequeno rasgão no tecido das crenças racionais foi consertado, ou pelo menos fechado.

Estou um pouco mais triste por causa disso tudo, um pouco mais perverso, e também um pouco mais cuidadoso. (...) embora a minha parte humana esteja mais perto da superfície do que nunca - um ser angustiado e faminto que ao mesmo tempo ama e odeia essa invencível casca imortal que me aprisiona.

A sede de sangue? Insaciável (...).

(...) nunca se tratou simplesmente de uma necessidade de sangue, embora o sangue seja o mais sensual que uma criatura possa desejar; é a intimidade do momento - beber, matar - a grande dança dos corpos colados que se desenrola à medida que a vítima enfraquece e eu me sinto expandir, engolindo a morte, que por uma fração de segundo resplandece enorme como a vida."


- Vampiro Lestat em "Rainha dos Condenados" de Anne Rice

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Floratta

Os passos de Tess ecoavam enquanto ele corria pelo piso de pedra do castelo. Tinha muitos papéis em suas mãos e mal enxergava o caminho a sua frente. Ele tomava fôlego para correr cada vez mais, mas só tinha um problema: ele não conhecia o castelo muito bem. "Não estou perdido, só não sei onde estou...", pensava, racionalizando para não deixar o pavor de ser repreendido pelo vice-rei tomar conta de sua mente.

Perguntava-se onde estaria o salão principal, e não havia nenhuma aia a quem pudesse perguntar. Os corredores estavam vazios. Corredores que terminavam em mais corredores, até escolher um que, por acaso, dava num espaço aberto. Resolveu parar um instante pra decidir onde ia, se voltava ou seguia em frente.

Decidiu-se, por fim, ir em frente, diminuindo o passo, chegando próximo de uma espécie de clareira."Por que castelos têm que ser tão grandes, pombas?", disse para si, pegando de alguma maneira seu relógio de bolso para ver as horas. Ao fazer isso, derrubou metade dos papéis que segurava no chão, as folhas se espalharam em volta de si, algumas sendo levadas pelo vento. Praguejou baixinho enquanto abaixava para pegar os papéis, os projetos importantes que o vice-rei tinha solicitado.

O vice-rei era exigente e pontual, não que fosse intolerante, mas ainda assim, era o vice-rei. A cada minuto, ficava mais próximo de estar atrasado, contava os segundos, planejando pra onde iria em seguida, depois de recolher as folhas próximas e ir atrás das fujonas que foram levadas pela brisa fresca. Era conveniente que o clima de Tallulah fosse sempre ameno, era fresco e agradável como uma eterna primavera com ocasionais dias de verão. Pensou que se o chão estivesse molhado, a água já teria borrado toda a tinta dos papéis.

Pegou a última folha de papel mais próxima e se adiantou para procurar as outras. A maioria estava só alguns metros adiante, outras fazendo uma espécie de trilha entre árvores próximas. Foi recolhendo as folhas que se distanciavam alguns passos umas das outras, até abaixar para pegar a última. Neste momento, mais uma brisa forte passou por aquele caminho, roubando a folha do alcance de suas mãos. Correu aos tropeços atrás dela, olhando-a a alguns metros acima de sua cabeça, acompanhando-a na direção do vento, sem reparar para onde ia ou onde pisava.

A folha rodopiava no ar, ora subindo um pouco mais, ora tão baixa a ponto de quase poder alcançá-la. Quase. Sentia seus dedos quase roçando-a quando ouviu um "splash-splash-splash" abaixo de si. Acabara de entrar na beira de um lago quando finalmente pegou a folha nas mãos. "Que ótimo, só me faltava um lago!", disse olhando-o. Então ouviu mais um splash que não viera de seus sapatos afundando na água, mas sim de algum lugar adiante. Levantou os olhos e viu de relance uma garota que gritou e puxou um pedaço de tecido contra si.

Ela olhou-o aparentemente incapaz de responder algo de imediato. Seu rosto estava muito vermelho numa expressão que era um misto de surpresa e vergonha. Aproximou mais o tecido contra si, observando o recém chegado com mais atenção, conhecendo o uniforme. Ele trabalhava para seu pai.

Ele, entendendo a situação ficou ainda mais vermelho que ela, e virou o rosto, afundando-o entre os papéis.

Ambos permaneceram mais algum tempo em silêncio, pensando no que dizer ou fazer.